Como o comentário do marido sobre a data de validade transformou a vida de uma mulher de 47 anos.

Olhei para os bifes que acabara de tirar do forno, levemente queimados nas bordas, e não acreditei no que ouvi.

Estás ultrapassada. Quero o divórico, disse o meu marido, afastando o prato. A frase soou tão banal, como se anunciasse mais um aumento no preço da gasolina. Fiquei paralisada, com a espátula de madeira na mão. O cacto no parapeito da janela erguia um espinho torto, como a confirmar: *”Acabou para ti.”* Tenho quarenta e sete anos, e com o Rui passámos vinte juntos. O nosso filho, Luís, já estuda noutra cidade há tempos, e o crédito da casa está quase pago. E agora, de repente, *”ultrapassada”*.

Tudo à minha volta parecia congelado, como uma imagem a preto e branco de um programa antigo da TV. Olhava para os bifes queimados, pensando: *”Dá para salvar a parte carbonizada, ou já é tarde demais?”* É estranho como a mente se agarra a pormenores quando algo terrível acontece.

### Rotina, a ferrugem das relações

Desde a primavera, um silêncio pesado invadira a casa. O Rui chegava tarde do trabalho e, aos fins de semana, mergulhava em relatórios que o novo chefe lhe dera. Eu, por minha vez, afundava-me na vida de escritório: balanços, pilhas de documentos e, à noite, acariciava a nossa gata, *Fofinha*. As nossas conversas resumiam-se a frases curtas: *”Compra leite”, “Põe dinheiro no cartão”, “Quem lava a loiça hoje?”* Uma fadiga pegajosa erguera um muro entre nós.

O Luís, com dezanove anos, vivia numa residência universitária, e as visitas eram raras. Às vezes, ligava a pedir dinheiro. No verão, voltara a casa e chegámos a planear um churrasco no campo, mas nunca aconteceu: ou o tempo estava mau, ou o Rui estava *”cansado demais”*. Já sentia que éramos mais vizinhos do que marido e mulher.

E ontem, ouvi o veredicto final: *”Estás ultrapassada.”*

### O conflito que crescia

A sombra do divórcio já se arrastava há muito. Há semanas, o lava-louças entupira-se e eu chamara um canalizador. De repente, o Rui dissera: *”Isso é coisa de homem, deixa estar.”* Porquê? Ele nunca mexia nisso. Mas culpou-me por não ter esperado, como se precisasse de mostrar que eu era incapaz.

Depois, houve o episódio estranho: a vizinha, a Dona Adelaide, perguntara no elevador: *”Rui, Marta, vão celebrar o aniversário de casamento?”* Trocámos um olhar confusotinha passado há um mês. Ambos esquecêramos. A vizinha fitou-nos com pena, como se já soubesse.

Mas nunca esperei tanta crueldade:
Divórcio? A sério?
A sério, respondeu o Rui, sem me olhar nos olhos. Estou cansado. Já dura há demasiado tempo.

### Tentativa de compreender

Passei a noite no sofá, onde costumava ver as minhas novelas. A *Fofinha*, sentindo o meu estado, ronronava aos meus pés. Quase não ouvi o Ruitrancara-se no quarto. De manhã, preparei o café e, ao ver o cacto no vaso inclinado, pensei: *”Coitado, também não aguenta. Está ali há anos, sem florir. Só deu uma flor, uma vez.”*

Queria falar, mas faltou-me força. Fui trabalhar, tentando disfarçar. No escritório, pilhas de papéis, colegas distraídos a jogar Sudoku E eu, incapaz de me concentrar. Uma ideia me martelava: *”Sou como um iogurte fora do prazo?”*

Só mais tarde liguei ao Luís:
Filho, o teu pai quer o divórcio.
Houve um silêncio. Depois:
Mãe, já sentia que algo não estava bem. Se precisares, eu ajudo-te. Não te deixes humilhar, está bem?

A sua voz calma reconfortou-me. Tinha um filho adulto. Uma mãe. E, acima de tudo, eu mesmaalguém capaz de recomeçar.

### A intrusão da sogra

No dia seguinte, a minha sogra ligou. Costuma perguntar sobre os pombos da varanda, mas esta vez foi direta:
Divórcio? O Rui contou-me. Como é que se abandona a família nesta idade?!
Não fui eu quem decidiu, murmurei.
Então não soubeste cuidar dele. Vocês não são crianças, Marta! Quase quarenta e oito anos! Devias ter-lhe dado paz, mas estavas sempre no teu trabalho.

Quase explodi: *”Então a culpa é minha?”* Mas controlei-me. De que servia discutir? Ela vivia numa aldeia, entre hortas e filhos dos sobrinhos. Mal conhecia a nossa vida.

### A conversa na cozinha

No sábado, finalmente conversámos. O Rui saiu da casa de banho, mal barbeado, e sentou-se à mesa. No relógio de cuco herdado da avó, o pássaro já não cantava há anos. Parecia que o tempo parara para nós também.
Não mudo de ideias, disse ele, afastando a chávena de chá. Estou cansado, Marta. Já não há sentimentos. Pode ficar com a casa. Só quero metade do valor.

Olhei para a mesa riscada, a toalha desbotada, e ouvi aquele discurso frio. Como se fosse uma reunião de negócios. Vinte anos, reduzidos a euros e centimos. A tristeza inundou-me, mas eu não choraria à frente dele.

Entendo, respondi, contendo a voz. Se é o divórcio, então seja.

Ficámos em silêncio. Um alívio estranho invadiu-me, como se tirassem uma mochila pesada das costas. Sim, era assustador ficar sozinha aos quarenta e sete, mas pior era viver onde ninguém precisava de ninguém.

### O regresso a casa da mãe

No dia seguinte, fui para casa da minha mãe. O prédio velho, com elevadores a ranger, sempre me incomodara. Ela abriu a porta, viu os meus olhos vermelhos e abraçou-me. Na cozinha, tudo era familiar: o armário escuro com panelas antigas, os tachos esmaltados, o banco da avó.

Não dão para se reconciliarem? perguntou, servindo chá numa chávena dos anos noventa. Com o teu pai, quase nos divorciámos, mas aguentámos.
Olhei pela janela. No prédio em frente, um lilás miserável no inverno, mas que renascia na primavera. *”Talvez tudo possa renascer”*, pensei. Mas já não sabia se queria reviver o que morrera entre nós.

### O cacto e o botão

Voltei ao apartamento quase vazioo Rui já levara algumas coisas. Parei na janela: o cacto, antes caído, agora tinha um botãozinho branco. *”Estarei a ver coisas? Não floresce há anos”*

Uma emoção contraditória invadiu-me: tristeza e uma alegria frágil. Como se a natureza dissesse: *”Até um cacto esquecido pode surpreender.”*

Liguei o rádiofalavam da subida dos preços. Era irónico que isso já não me preocupasse tanto quanto aquele botão. Talvez fossem esses pequenos detalhes que nos mantinham à tona.

### Novos planos

Dois dias depois, o Luís ligou:
M

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